tudo depende daquilo que se diz da noite. por Elida Tesler.

Texto escrito para a exposição Azul Ftalocianina e Branco de Titânio, Porto Alegre-RS, Brasil, 2006.

 

Tudo depende daquilo  que não se diz do dia.[1] Esta proposição de Samuel Beckett nos introduz vertiginosamente no trabalho atual de Clarissa Cestari, desde que tenhamos a disponibilidade de completar o movimento da asserção: Tudo também depende do que se diz da noite. O caráter dual é o que move sua produção. A artista cria diálogo com os espaços, associando o negativo da imagem ao positivo da tela. Neste jogo, há um arrojado arremesso, onde o elemento surpresa depende de uma sombra. Feixes de luz são como fios da vida atirados ao longe, prolongando-se horizontalmente em uma superfície vertical, ecoando intermitências da morte. Cada tela é apenas um pedaço de parede que absorveu as projeções luminosas e que agora nos devolve os gestos inacabados da artista.

 

O preto é o preto. O branco é o branco. O cinza é o cinza. Mas o preto é o azul.  E isto é totalmente baseado em nada. [2] Esta foi a forma escolhida por Clarissa para apresentar-me suas pinturas pela primeira vez. A  evidência absoluta dos elementos sua fala recebe algumas nuances quando nos aproximamos do processo de trabalho da artista. Nas paredes de seu atelier, estão fixadas as pinturas em preto e branco, manchas em pequenos fragmentos de papel,  resultantes de gestos autômatos, de algumas incidências do inconsciente, como prolongamento de um primeiro gesto. Eis a origem de todo a sucessão de etapas: o que as cerdas do pincel rasuram, Clarissa transforma em elemento formal autônomo da pintura, construindo-o um a um, linha a linha, aplicando tinta com bisnaga de confeiteiro. Linha a linha como que escreve um livro, como quem desenha um mapa, como quem textura a passagem do tempo: o antes do desenho e o depois da sombra projetada. O retroprojetor assume importante papel nesta operação. Ele atira para trás o que foi a intenção do traço espontâneo e projeta no muro a subversão do gesto, ao qual  Clarissa persegue obstinadamente. Com  acumulações de linhas horizontais, verticais, diagonais e curvas, que ela chama  orgânicas, utilizando cores puras Azul Ftalocianina e Branco Titânio, misturados a um gel médium brilhante acrílico que, além de manter o caráter molhado da pintura (o tempo recente) preserva o que pode haver de tridimensional na linha, sedimentando-a em justaposições.

 

Dual: o mecânico e o manual, o claro e o escuro, a luz e a sombra, o longe e o perto, a linha e a superfície, o horizontal e o vertical, o dia e a noite, vida e morte em dípticos.

 



[1] BECKETT, Samuel. Como é. SP.Iluminuras, 2003, p.46

[2] Conversa com Clarissa Cestari, em seu atelier, na noite de 29 de agosto de 2006. 

 

 

clarissa cestari ©